domingo, 22 de agosto de 2010

O Poeta e a Lua - Vinicius de Moraes

Em meio a um cristal de ecos
O poeta vai pela rua
Seus olhos verdes de éter
Abrem cavernas na lua.
A lua volta de flanco
Eriçada de luxúria
O poeta, aloucado e branco
Palpa as nádegas da lua.
Entre as esferas nitentes
Tremeluzem pêlos fulvos
O poeta, de olhar dormente
Entreabre o pente da lua.
Em frouxos de luz e água
Palpita a ferida crua
O poeta todo se lava
De palidez e doçura.
Ardente e desesperada
A lua vira em decúbito
A vinda lenta do espasmo
Aguça as pontas da lua.
O poeta afaga-lhe os braços
E o ventre que se menstrua
A lua se curva em arco
Num delírio de volúpia.
O gozo aumenta de súbito
Em frêmitos que perduram
A lua vira o outro quarto
E fica de frente, nua.
O orgasmo desce do espaço
Desfeito em estrelas e nuvens
Nos ventos do mar perspassa
Um salso cheiro de lua
E a lua, no êxtase, cresce
Se dilata e alteia e estua
O poeta se deixa em prece
Ante a beleza da lua.
Depois a lua adormece
E míngua e se apazigua...
O poeta desaparece
Envolto em cantos e plumas
Enquanto a noite enlouquece
No seu claustro de ciúmes.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

"Você tem experiência?"

Já fiz cosquinha na minha irmã pra ela parar de chorar.
Já me queimei brincando com vela.
Eu já fiz bola de chiclete e melequei todo o rosto.
Já conversei com o espelho, e até já brinquei de ser bruxo.
Já quis ser astronauta, violonista, mágico, caçador e trapezista.
Já me escondi atrás da cortina e esqueci os pés pra fora.
Já passei trote por telefone.
Já tomei banho de chuva e acabei me viciando.
Já roubei beijo.
Já confundi sentimentos.
Peguei atalho errado e continuo andando pelo desconhecido.
Já raspei o fundo da panela de arroz carreteiro.
Já me cortei fazendo a barba apressado.
Já chorei ouvindo música no ônibus.
Já tentei esquecer algumas pessoas, mas descobri que eram as mais
difíceis de esquecer.
Já subi escondido no telhado pra tentar pegar estrelas.
Já subi em árvore pra roubar fruta.
Já caí da escada de bunda.
Já fiz juras eternas.
Já escrevi no muro da escola.
Já chorei sentado no chão do banheiro.
Já fugi de casa pra sempre, e voltei no outro instante.
Já corri pra não deixar alguém chorando.
Já fiquei sozinho no meio de mil pessoas sentindo falta de uma só.
Já vi pôr-do-sol cor-de-rosa e alaranjado.
Já me joguei na piscina sem vontade de voltar.
Já bebi uísque até sentir dormente os meus lábios.
Já olhei a cidade de cima e mesmo assim não encontrei meu lugar.
Já senti medo do escuro, já tremi de nervoso.
Já quase morri de amor, mas renasci novamente pra ver o sorriso de
alguém especial.
Já acordei no meio da noite e fiquei com medo de levantar.
Já apostei em correr descalço na rua,
Já gritei de felicidade,
Já roubei rosas num enorme jardim.
Já me apaixonei e achei que era para sempre, mas sempre era um 'para
sempre' pela metade.
Já deitei na grama de madrugada e vi a Lua virar Sol.
Já chorei por ver amigos partindo, mas descobri que logo chegam novos,
e a vida é mesmo um ir e vir sem razão.
Foram tantas coisas feitas.
Tantos momentos fotografados pelas lentes da emoção e guardados num
baú, chamado coração.

E agora um formulário me interroga, me encosta na parede e grita:
'Qual sua experiência?' .

Essa pergunta ecoa no meu cérebro: experiência...experiência...
Será que ser 'plantador de sorrisos' é uma boa experiência?
Sonhos!!! Talvez eles não saibam ainda colher sonhos!

Agora gostaria de indagar uma pequena coisa para quem formulou esta
pergunta:

Experiência? "Quem a tem, se a todo o momento tudo se renova?"


Obs: Esse lindo texto foi escrito no contexto de um processo seletivo de trabalho, no qual se deveria escrever uma redação a partir da pergunta: "Você tem experiência?".

quarta-feira, 23 de junho de 2010

O que será (a flor da terra) - Chico Buarque e Milton Nascimento

O que será que será
Que andam suspirando
Pelas alcovas?
Que andam sussurrando
Em versos e trovas?
Que andam combinando
No breu das tocas?
Que anda nas cabeças?
Anda nas bocas?
Que andam acendendo
Velas nos becos?
Estão falando alto
Pelos botecos
E gritam nos mercados
Que com certeza
Está na natureza
Será, que será?
O que não tem certeza
Nem nunca terá!
O que não tem concerto
Nem nunca terá!
O que não tem tamanho...

O que será? Que Será?
Que vive nas idéias
Desses amantes
Que cantam os poetas
Mais delirantes
Que juram os profetas
Embriagados
Está na romaria
Dos mutilados
Está nas fantasias
Dos infelizes
Está no dia a dia
Das meretrizes
No plano dos bandidos
Dos desvalidos
Em todos os sentidos
Será, que será?
O que não tem decência
Nem nunca terá!
O que não tem censura
Nem nunca terá!
O que não faz sentido...

O que será? Que será?
Que todos os avisos
Não vão evitar
Porque todos os risos
Vão desafiar
Porque todos os sinos
Irão repicar
Porque todos os hinos
Irão consagrar
E todos os meninos
Vão desembestar
E todos os destinos
Irão se encontrar
E mesmo padre eterno
Que nunca foi lá
Olhando aquele inferno
Vai abençoar!
O que não tem governo
Nem nunca terá!
O que não tem vergonha
Nem nunca terá!
O que não tem juízo...

O que será (à flor da pele) - Chico Buarque

O que será que me dá
Que me bole por dentro, será que me dá
Que brota à flor da pele, será que me dá
E que me sobe às faces e me faz corar
E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar
E que me faz mentir e me faz suplicar
O que não tem medida, nem nunca terá
O que não tem remédio, nem nunca terá
O que não tem receita

O que será que será
Que dá dentro da gente e que não devia
Que desacata a gente, que é revelia
Que é feito uma aguardente que não sacia
Que é feito estar doente de uma folia
Que nem dez mandamentos vão conciliar
Nem todos os ungüentos vão aliviar
Nem todos os quebrantos, toda alquimia
Que nem todos os santos, será que será
O que não tem descanso, nem nunca terá
O que não tem cansaço, nem nunca terá
O que não tem limite

O que será que me dá
Que me queima por dentro, será que me dá
Que me perturba o sono, será que me dá
Que todos os ardores me vêm atiçar
Que todos os tremores me vêm agitar
E todos os suores me vêm encharcar
E todos os meus nervos estão a rogar
E todos os meus órgãos estão a clamar
E uma aflição medonha me faz suplicar
O que não tem vergonha, nem nunca terá
O que não tem governo, nem nunca terá
O que não tem juízo

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Esquadros - Adrianha Calcanhotto

Eu ando pelo mundo
Prestando atenção em cores
Que eu não sei o nome
Cores de Almodóvar
Cores de Frida Kahlo
Cores!

Passeio pelo escuro
Eu presto muita atenção
No que meu irmão ouve
E como uma segunda pele
Um calo, uma casca
Uma cápsula protetora
Ai, Eu quero chegar antes
Prá sinalizar
O estado de cada coisa
Filtrar seus graus...

Eu ando pelo mundo
Divertindo gente
Chorando ao telefone
E vendo doer a fome
Nos meninos que têm fome...

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

Eu ando pelo mundo
E os automóveis correm
Para quê?
As crianças correm
Para onde?
Transito entre dois lados
De um lado
Eu gosto de opostos
Exponho o meu modo
Me mostro
Eu canto para quem?

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle...

Eu ando pelo mundo
E meus amigos, cadê?
Minha alegria, meu cansaço
Meu amor cadê você?
Eu acordei
Não tem ninguém ao lado...

Pela janela do quarto
Pela janela do carro
Pela tela, pela janela
Quem é ela? Quem é ela?
Eu vejo tudo enquadrado
Remoto controle..

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Sei lá... a vida tem sempre razão - Vinicius de Moraes e Toquinho

Tem dias que eu fico pensando na vida
E sinceramente não vejo saída.
Como é, por exemplo, que dá pra entender:
A gente mal nasce, começa a morrer.

Depois da chegada vem sempre a partida,
Porque não há nada sem separação.
Sei lá, sei lá, a vida é uma grande ilusão.
Sei lá, sei lá, só sei que ela está com a razão.

A gente nem sabe que males se apronta.
Fazendo de conta, fingindo esquecer
Que nada renasce antes que se acabe,
E o sol que desponta tem que anoitecer.

De nada adianta ficar-se de fora.
A hora do sim é o descuido do não.
Sei lá, sei lá, só sei que é preciso paixão.
Sei lá, sei lá, a vida tem sempre razão.

El arte de la guerra - Sun Tzu

Si eres capaz, finge incapacidad.
Si eres fuerte, exhibe debilidad.
Cuando estés cerca, simula que estás lejos.
No ataques nunca donde el enemigo es poderoso.
Evita siempre el combate que no puedas ganar.
Si estás en inferioridad de condiciones, retírate.
Sé el enemigo está unido, divídelo.
Avanza cuando no te espere
Y por donde menos te espere, lanza tu ataque.
Para conocer al enemigo, conócete.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Poema de sete faces - Carlos Drummond de Andrade

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Sampa - Caetano Veloso

Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João
É que quando eu cheguei por aqui eu nada entendi
Da dura poesia concreta de tuas esquinas
Da deselegância discreta de tuas meninas

Ainda não havia para mim Rita Lee
A tua mais completa tradução
Alguma coisa acontece no meu coração
Que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João

Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho
E à mente apavora o que ainda não é mesmo velho
Nada do que não era antes quando não somos mutantes

E foste um difícil começo
Afasto o que não conheço
E quem vende outro sonho feliz de cidade
Aprende depressa a chamar-te de realidade
Porque és o avesso do avesso do avesso do avesso

Do povo oprimido nas filas, nas vilas, favelas
Da força da grana que ergue e destrói coisas belas
Da feia fumaça que sobe, apagando as estrelas
Eu vejo surgir teus poetas de campos, espaços
Tuas oficinas de florestas, teus deuses da chuva

Pan-Américas de Áfricas utópicas, túmulo do samba
Mais possível novo quilombo de Zumbi
E os novos baianos passeiam na tua garoa
E novos baianos te podem curtir numa boa.

Louvação - Gilberto Gil

Vou fazer a louvação - louvação, louvação
Do que deve ser louvado - ser louvado, ser louvado
Meu povo, preste atenção - atenção, atenção
Repare se estou errado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado

E louvo, pra começar
Da vida o que é bem maior
Louvo a esperança da gente
Na vida, pra ser melhor
Quem espera sempre alcança
Três vezes salve a esperança!

Louvo quem espera sabendo
Que pra melhor esperar
Procede bem quem não pára
De sempre mais trabalhar
Que só espera sentado
Quem se acha conformado

Vou fazendo a louvação - louvação, louvação
Do que deve ser louvado - ser louvado, ser louvado
Quem 'tiver me escutando - atenção, atenção
Que me escute com cuidado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado

Louvo agora e louvo sempre
O que grande sempre é
Louvo a força do homem
E a beleza da mulher
Louvo a paz pra haver na terra
Louvo o amor que espanta a guerra

Louvo a amizade do amigo
Que comigo há de morrer
Louvo a vida merecida
De quem morre pra viver
Louvo a luta repetida
Da vida pra não morrer

Vou fazendo a louvação - louvação, louvação
Do que deve ser louvado - ser louvado, ser louvado
De todos peço atenção - atenção, atenção
Falo de peito lavado
Louvando o que bem merece
Deixo o que é ruim de lado

Louvo a casa onde se mora
De junto da companheira
Louvo o jardim que se planta
Pra ver crescer a roseira
Louvo a canção que se canta
Pra chamar a primavera

Louvo quem canta e não canta
Porque não sabe cantar
Mas que cantará na certa
Quando enfim se apresentar
O dia certo e preciso
De toda a gente cantar

E assim fiz a louvação - louvação, louvação
Do que vi pra ser louvado - ser louvado, ser louvado
Se me ouviram com atenção - atenção, atenção
Saberão se estive errado
Louvando o que bem merece
Deixando o ruim de lado.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A Metafísica do Corpo - Carlos Drummond de Andrade

A metafísica do corpo se entremostra
nas imagens. A alma do corpo
modula em cada fragmento sua música
de esferas e de essências
além da simples carne e simples unhas.

Em cada silêncio do corpo identifica-se
a linha do sentido universal
que à forma breve e transitiva imprime
a solene marca dos deuses
e do sonho.

Entre folhas, supreende-se
na últina ninfa
o que na mulher ainda é ramo e orvalho
e, mais que natureza, pensamento
da unidade inicial do mundo:
mulher planta brisa mar,
o ser telúrico, espontâneo,
como se um galho fosse da infinita
árvore que condensa
o mel, o sol, o sal, o sopro acre da vida.

De êxtase e tremor banha-se a vista
ante a luminosa nádega opalescente,
a coxa, o sacro ventre, prometido
ao ofício de existir, e tudo mais que o corpo
resume da outra vida, mais florente,
em que todos fomos terra, seiva e amor.

Eis que se revela o ser, na transparência
do invólucro perfeito.

As contradições do Corpo - Carlos Drummond de Andrade

Meu corpo não é meu corpo,
é ilusão de outro ser.
Sabe a arte de esconder-me
e é de tal modo sagaz
que a mim de mim ele oculta.

Meu corpo, não meu agente,
meu envelope selado,
meu revólver de assustar,
tornou-se meu carcereiro,
me sabe mais que me sei.

Meu corpo apaga a lembrança
que eu tinha de minha mente.
Inocula-me seus patos,
me ataca, fere e condena
por crimes não cometidos.

O seu ardil mais diabólico
está em fazer-se doente.
Joga-me o peso dos males
que ele tece a cada instante
e me passa em revulsão.

Meu corpo inventou a dor
a fim de torná-la interna,
integrane do meu Id,
ofuscadora da luz
que aí tentava espalhar-se.

Outras vezes se diverte
sem que eu saiba ou que deseje,
e nesse prazer maligno,
que suas células impregna,
do meu mutismo escarnece.

Meu corpo ordena que eu saia
em busca do que não quero,
e me nega, ao se afirmar
como senhor do meu Eu
convertido em cão servil.

Meu prazer mais refinado,
não sou eu quem vai senti-lo.
É ele, por mim, rapace,
e dá mastigados restos
à minha fome absoluta.

Se tento dele afastar-me,
por abstração ignorá-lo,
volta a mim, com todo o peso
de sua carne poluída,
seu tédio, seu desconforto.

Quero romper com meu corpo,
quero enfrentá-lo, acusá-lo,
por abolir minha essência,
mas ele sequer me escuta
e vai pelo rumo oposto.

Já premido por seu pulso
de inquebrantável rigor,
não sou mais que dantes era:
com volúpia dirigida,
saio a bailar com meu corpo.

Flor Experiente - Carlos Drummond de Andrade

Uma flor matizada
entreabre-se em meus dedos.
Já sou terra estrumada
- é um de meus segredos.

Careceu de vida lenta
e mais que lenta, peca,
para cor que ornamenta
esta epiderme seca.

Assino-me no cálice
de estrias fraternais.
O pensamento cale-se.
É jardim, nada mais.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Fundacíon de la taberna - Eduardo Galeano

Cuando Irak era Babilonia, manos femeninas se ocupaban de la mesa:

"Que la cerveza nunca falte,
la casa sea rica en sopas
y el pan abunde."

En los palacios y en los templos, el chef era hombre. Pero en la casa, no. La mujer hacía las diversas cervezas, dulce, fina, blanca, rubia, negra, añeja, y también las sopas y los panes. Y lo que sobraba, se ofrecía a los vecinos.
Con el paso del tiempo, algunas casas tuvieron mostrador y los invitados se hicieron clientes. Y nació la taberna. Y fue lugar de encuentro y espacio de libertad ese reino chiquito, esta extensión de la casa, donde la mujer mandaba.
En las tabernas se incubaban conspiraciones y se anudaban amores prohibidos.
Hace más de tres mil setecientos años, en tiempos del rey Hammurabi, los dioses transmitieron doscientas ochenta y dos leyes al mundo.
Una de las leyes mandaba quemar vivas a las sacerdotisas que participaran en las conjuras de las tabernas.

Breve historia de la cerveza - Eduardo Galeano

Uno de los proverbios más antiguos, escrito en lengua de los sumerios, exime al trago de toda culpa en caso de accidentes:

"La cerveza está bien.
Lo que está mal es el camino."

Y según cuenta el más antiguo de los libros, Enkidu, el amigo del rey Gilgamesh, fue bestia salvaje hasta que descubrió la cerveza y el pan.
La cerveza viajó a Egipto desde la tierra que ahora llamamos Irak. Como daba nuevos ojos a la cara, los egipcios creyeron que era un regalo de su dios Osiris. Y como la cerveza de cebada era hermana melliza del pan, la llamaron de pan líquido.
En los Andes americanos, es la ofrenda más antigua: desde siempre la tierra pide que le derramen chorritos de chicha, cerveza de maíz, para alegrar sus días.

Breve historia del vino - Eduardo Galeano

Dudas razonables nos impiden saber si Adán fue tentado por una manzana o por una uva.
Sí sabemos, en cambio, que hubo vino en este mundo desde la Edad de Piedra, cuando las uvas fermentaban sin ayuda de nadie.
Antiguos cánticos chinos recetaban el vino para aliviar las dolencias de los tristes.
Los egipcios creían que el dios Horus tenía un ojo de sol y otro de luna, y el ojo de luna lloraba lágrimas de vino, que los vivos bebían para dormirse y los muertos para despertarse.
Una vid era el emblema del poder de Ciro, rey de los persas, y el vino regaba las fiestas de los griegos y de los romanos.
Para celebrar el amor humano, Jesús convirtió en vino el agua de seis tinajas. Fue su primer milagro.

sábado, 15 de maio de 2010

O dia da criação - Vinicius de Moraes

Macho e fêmea os criou.
Gênese, 1, 27


I


Hoje é sábado, amanhã é domingo
A vida vem em ondas, como o mar
Os bondes andam em cima dos trilhos
E Nosso Senhor Jesus Cristo morreu na cruz para nos salvar.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Não há nada como o tempo para passar
Foi muita bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
Mas por via das dúvidas livrai-nos meu Deus de todo mal.


Hoje é sábado, amanhã é domingo
Amanhã não gosta de ver ninguém bem
Hoje é que é o dia do presente
O dia é sábado.


Impossível fugir a essa dura realidade
Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios
Todos os namorados estão de mãos entrelaçadas
Todos os maridos estão funcionando regularmente
Todas as mulheres estão atentas
Porque hoje é sábado.


II


Neste momento há um casamento
Porque hoje é sábado
Hoje há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado
Há um rico que se mata
Porque hoje é sábado
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado
Há um grande espírito-de-porco
Porque hoje é sábado
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado
Há criançinhas que não comem
Porque hoje é sábado
Há um piquenique de políticos
Porque hoje é sábado
Há um grande acréscimo de sífilis
Porque hoje é sábado
Há um ariano e uma mulata
Porque hoje é sábado
Há uma tensão inusitada
Porque hoje é sábado
Há adolescências seminuas
Porque hoje é sábado
Há um vampiro pelas ruas
Porque hoje é sábado
Há um grande aumento no consumo
Porque hoje é sábado
Há um noivo louco de ciúmes
Porque hoje é sábado
Há um garden-party na cadeia
Porque hoje é sábado
Há uma impassível lua cheia
Porque hoje é sábado
Há damas de todas as classes
Porque hoje é sábado
Umas difíceis, outras fáceis
Porque hoje é sábado
Há um beber e um dar sem conta
Porque hoje é sábado
Há uma infeliz que vai de tonta
Porque hoje é sábado
Há um padre passeando à paisana
Porque hoje é sábado
Há um frenesi de dar banana
Porque hoje é sábado
Há a sensação angustiante
Porque hoje é sábado
De uma mulher dentro de um homem
Porque hoje é sábado
Há uma comemoração fantástica
Porque hoje é sábado
Da primeira cirurgia plástica
Porque hoje é sábado
E dando os trâmites por findos
Porque hoje é sábado
Há a perspectiva do domingo
Porque hoje é sábado


III


Por todas essas razões deverias ter sido riscado do Livro das Origens,
ó Sexto Dia da Criação.
De fato, depois da Ouverture do Fiat e da divisão de luzes e trevas
E depois, da separação das águas, e depois, da fecundação da terra
E depois, da gênese dos peixes e das aves e dos animais da terra
Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado.
Na verdade, o homem não era necessário
Nem tu, mulher, ser vegetal, dona do abismo, que queres como
as plantas, imovelmente e nunca saciada
Tu que carregas no meio de ti o vórtice supremo da paixão.
Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias
Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa
Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos
Seríamos talvez pólos infinitamente pequenos de partículas cósmicas
em queda invisível na
terra.
Não viveríamos da degola dos animais e da asfixia dos peixes
Não seríamos paridos em dor nem suaríamos o pão nosso de cada dia
Não sofreríamos males de amor nem desejaríamos a mulher do próximo
Não teríamos escola, serviço militar, casamento civil, imposto sobre a renda
e missa de
sétimo dia.
Seria a indizível beleza e harmonia do plano verde das terras e das
águas em núpcias
A paz e o poder maior das plantas e dos astros em colóquio
A pureza maior do instinto dos peixes, das aves e dos animais em [cópula.
Ao revés, precisamos ser lógicos, freqüentemente dogmáticos
Precisamos encarar o problema das colocações morais e estéticas
Ser sociais, cultivar hábitos, rir sem vontade e até praticar amor sem vontade
Tudo isso porque o Senhor cismou em não descansar no Sexto Dia e [sim no Sétimo
E para não ficar com as vastas mãos abanando
Resolveu fazer o homem à sua imagem e semelhança
Possivelmente, isto é, muito provavelmente
Porque era sábado.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Jardins - Rubens Alves

Comecei a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que os livros eram um tapete mágico que me levavam instantaneamente a viajar pelo mundo... Lendo, eu deixava de ser o menino pobre que era e me tornava um outro. Eu me vejo assentado no chão, num dos quartos do sobradão do meu avô. Via figuras. Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas alguém colara gravuras, recortadas de revistas. Não sei quem o fez. Só sei que quem o fez amava as crianças. Eu passava horas vendo as figuras e não me cansava de vê-las de novo. Um outro livro que me encantava era o “Jeca Tatu“, do Monteiro Lobato. Começava assim: “Jeca Tatu era um pobre caboclo...“ De tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabê-lo de cor. “De cor“: no coração. Aquilo que o coração ama não é jamais esquecido. E eu o “lia“ para minha tia Mema, que estava doente, presa numa cadeira de balanço. Ela ria o seu sorriso suave, ouvindo minha leitura. Um outro livro que eu amava pertencera à minha mãe criança. Era um livro muito velho. Façam as contas: minha mãe nasceu em 1896... Na capa havia um menino e uma menina que brincavam com o globo terrestre. Era um livro que me fazia viajar por países e povos distantes e estranhos. Gravuras apenas. Esquimós, em suas roupas de couro, dando tiros para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Embaixo, a explicação: “Onde os esquimós vivem a noite é muito longa; dura seis meses.“ Um crocodilo, bocarra enorme aberta, com seus dente pontiagudos, e um negro se arrastando em sua direção, tendo na mão direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria era introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse conta. Quando o crocodilo fechasse a boca estaria fisgado e haveria festa e comedoria! Na gravura dedicada aos Estados Unidos havia um edifício, com a explicação assombrosa: “Nos Estados Unidos há casas com 10 andares...“ Mas a gravura que mais mexia comigo representava um menino e uma menina brincando de fazer um jardim. Na verdade, era mais que um jardim. Era um mini-cenário. Haviam feito montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago cuja água, transbordando, se transformava num riachinho. E, às suas margens, o menino e a menina haviam plantado uma floresta de pequenas plantas e musgos. A menina enchia o lago com um regador. Eu não me contentava em ver o jardim: largava o livro e ia para a horta, com a idéia de plantar um jardim parecido. E assim passava toda uma tarde, fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã como as árvores da floresta... Onde foi parar o livro da minha mãe? Não sei. Também não importa. Ele continua aberto dentro de mim.

Bachelard se refere aos “sonhos fundamentais“ da alma. “Sonhos fundamentais“: o que é isso? É simples. Há sonhos que nascem dos eventos fortuitos, peculiares a cada pessoa. Esses sonhos são só delas: sonhos acidentais, individuais. Mas há certos sonhos que moram na alma de todas as pessoas. Jung deu a esses sonhos universais o nome de “arquétipos“. Esses são os sonhos fundamentais. O fato de termos, todos, os mesmos sonhos fundamentais, cria a possibilidade de “comunhão“. Ao compartilhar os mesmos sonhos descobrimo-nos irmãos. Um desses sonhos fundamentais é um “jardim“.

Faz de contas que a sua alma é um útero. Ela está grávida. Dentro dela há um feto que quer nascer. Esse feto que quer nascer é o seu sonho. Quem engravidou a sua alma eu não sei. Acho que foi um ser de um outro mundo... Imagino que o tal de “Big-Bang“ a que se referem os astrônomos foi Deus ejaculando seu grande sonho e soltando pelo vazio milhões, bilhões, trilhões de sementes. Em cada uma delas estava o sonho fundamental de Deus: um jardim, um Paraíso... Assim, sua alma está grávida com o sonho fundamental de Deus...

Mas toda semente quer brotar, todo feto quer nascer, todo sonho quer se realizar. Sementes que não nascem, fetos que são abortados, sonhos que não são realizados, se transformam em demônios dentro da alma. E ficam a nos atormentar. Aquelas tristezas, aquelas depressões, aquelas irritações - vez por outra elas tomam conta de você – aposto que são o sonho de jardim que está dentro e não consegue nascer. Deus não tem muita paciência com pessoas que não gostam de jardins...

Menino, os jardins eram o lugar de minha maior felicidade. Dentro da casa os adultos estavam sempre vigiando: “Não mexa aí, não faça isso, não faça aquilo...“ O Paraíso foi perdido quando Adão e Eva começaram a se vigiar. O inferno começa no olhar do outro que pede que eu preste contas. E como as crianças são seres paradisíacos, eu fugia para o jardim. Lá eu estava longe dos adultos. Eu podia ser eu mesmo. O jardim era o espaço da minha liberdade. O jardim era o espaço da minha liberdade. As árvores eram minhas melhores amigas. A pitangueira, com seus frutinhos sem vergonha. Meu primeiro furto foi o furto de uma pitanga: “furto“ – “fruto“ – é só trocar uma letra.... Até mesmo inventei uma maquineta de roubar pitangas... Havia uma jabuticabeira que eu considerava minha, em especial. Fiz um rego à sua volta para que ela bebesse água todo dia. Jabuticabeiras regadas sempre florescem e frutificam várias vezes por ano. Na ocasião da florada era uma festa. O perfume das suas flores brancas é inesquecível. E vinham milhares de abelhas. No pé de nêspera eu fiz um balanço. Já disse que balançar é o melhor remédio para depressão. Quem balança vira criança de novo. Razão por que eu acho um crime que, nas praças públicas, só haja balancinhos para crianças pequenas. Há de haver balanços grandes para os grandes! Já imaginaram o pai e a mãe, o avô e a avó, balançando? Riram? Absurdo? Entendo. Vocês estão velhos. Têm medo do ridículo. Seu sonho fundamental está enterrado debaixo do cimento. Eu já sou avô e me rejuvenesço balançando até tocar a ponta do pé na folha do caquizeiro onde meu balanço está amarrado!

Crescido, os jardins começaram a ter para mim um sentido poético e espiritual. Percebi que a Bíblia Sagrada é um livro construído em torno de um jardim. Deus se cansou da imensidão dos céus e sonhou... Sonhou com um ... jardim. Se ele – ou ela – estivesse feliz lá no céu, ele ou ela não teria se dado ao trabalho de plantar um jardim. A gente só cria quando aquilo que se tem não corresponde ao sonho. Todo ato de criação tem por objetivo realizar um sonho. E quando o sonho se realiza, vem a experiência de alegria. Nos textos de Gênesis está dito que, ao término do seu trabalho, Deus viu que tudo “era muito bom.“ O mais alto sonho de Deus é um jardim. Essa é a razão porque no Paraíso não havia templos e altares. Para que? “Deus andava pelo meio do jardim...“ Gostaria de saber quem foi a pessoa que teve a idéia de que Deus mora dentro de quatro paredes! Um coisa eu garanto: não foi idéia dele. Seria bonito se as religiões, ao invés de gastar dinheiro construindo templos e catedrais, usassem esse mesmo dinheiro para fazer jardins onde, evidentemente, crianças, adultos e velhos poderiam balançar e tocar os pés nas folhas das árvores. Ninguém jamais viu a Deus. Um jardim é o seu rosto sorridente... E se vocês lerem as visões dos profetas, verão que o Messias é jardineiro: vai plantar de novo o Paraíso: nascerão regatos nos desertos, nos lugares ermos crescerão a murta (perfumada!), as oliveiras, as videiras, as figueiras, os pés de romã, as palmeiras... E lá, à sombra das árvores, acontecerá o amor... Leia o livro dos “Cânticos dos Cânticos“!

Pensei, então, que o ato de plantar uma árvore é um anúncio de esperança. Especialmente se for uma árvore de crescimento lento. E isso porque, sendo lento o seu crescimento, eu a plantarei sabendo que nem vou comer dos seus frutos e nem vou me assentar à sua sombra.... Eu a plantarei pensando naqueles que comerão dos seus frutos e se assentarão à sua sombra. E isso bastará para me trazer felicidade!

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

TOPANDO AO TODO DO COTOPAXI







Começo por um parênteses – um parênteses que é o mesmo que o lapso entre um pensamento e outro. Giramos em círculos como gira o mundo, e por hora não quero girar neste mesmo mundo que girei até agora. Por isso o lapso de tempo que deixei de escrever nesse blog. Por alguns momentos temos que deixar de pensar que estamos girando, e assim giramos sem tontearmos.

Aqui vai um simples relato de uma não tão mera experiência.

Como toda experiência que vivemos, tenho que começar de algum lugar: assim, o relato da escalada de minha primeira montanha (em sentido literal, e não metafórico) começa contando um pouco do que é o Cotopaxi. Na verdade, Cotopaxi não é simplesmente uma montanha, senão que um dos vulcões ativos mais altos do mundo e o segundo vulcão mais alto do Equador, com uma elevação de 5.897 metros de altura. Deixando visível o poder deste vulcão, Padre Velasco, em sua “Historia del Reino de Quito”, descreve os efeitos devastadores de sua atividader: sobre a erupção de 1698, diz: «Quiso entonces darse a conocer mucho más famoso y terrible que los Etnas, y los Vesubios. Dio principio con espantosos y continuos bramidos y con arrrojar pirámides de humo, costumbre con que quedó hasta estos últimos tiempos. Las prolongadas lenguas de fuego, peñazcos encendidos, en todas las erupciones ha echado agua, solo comparables con la inmensidad del mar». Sobre a erupção de 6 de junho de 1742, diz: «No hizo daño particular con terremotos, pero si con la venida de aguas, que robaron muchas haciendas, ganados, molinos y algunas casas del Barrio caliente del asiento de Latacunga. Las cenizas, arena y menuda piedra, ocuparon muchos centenares de Leguas, en circunferencia, circunstancia que se observa en todas sus erupciones». Registrando também a erupção ocorrida em 1743: «Fue precedida no solamente de bramidos e incendios por la boca, sino del fenómeno más raro que se observo en todo el monte. Déjose ver todo interior encendido, no de otra suerte que de un farol, transpirando por millares de grietas y aberturas, el océano de sus interiores llamas. Tampoco hizo daño con terremotos y la grande erupción hizo de solas aguas, causó menores daños por estar ya robados los ganados y los haciendas de sus anchurosos cauces». Sobre a de 1744: «La portentosa e increíble inundación de agua, que arrojó constantemente toda la noche, creyeron a los principios que era toda la nieve del deshecha, con haberse caldeado el monte; porque se dejó ver al otro día todo limpio de ella… Cuando sobreviniendo las aguas, se lavó el monte de la ceniza y la arena que lo cubría y descubrió toda su nieve empedernida, a excepción de la gran calle que abrió desde la boca hasta su pie. Este cauce era profundo y de más de una legua de ancho, el cual no se vistió de nieve por algunos años… Bajando de aquel cauce, formó al pie un mar Mediterráneo de muchas leguas, profundísiomo, entre montañas y cordilleras, con estrechos desahogos. Desde aquí se dividió rompiendo en nuevos desagües… La parte del Sur no fue la mayor de las tres y ocupo no obstante más de una legua de anchura, en terreno quebrado y profundo. Subió su innundación hasta la plaza mayor de Latacunga y tuvo rodeados a los cuarteles de las casas , entrándose en ellas por puertas dejando en las calles pedrones de hielo arrancados al bajar del monte». O século XVIII foi marcado por nada menos que 50 erupções! Sua última atividade, até agora, foi em 1942 e de menores proporções. Em sua etimologia, a palavra “cotopaxi” significa, em línguas caribes: Rei da morte; em Cayapa: Pescoço ardente; em Quechua: Massa de fogo.

Chegamos de carro até pé do vulcão, aos 4.500 metros de altitude, na metade do dia 18 de janeiro de 2010. O período da tarde compreendeu em caminhar até os 4.800 metros, onde se encontra um refúgio, carregando todos os equipamentos, roupas e comidas. O primeiro desafio é o processo de adaptação à altitude, coisa que para mim foi relativamente fácil, já que havia sofrido fortemente seus efeitos quando estive na Bolívia – muitas das pessoas no refúgio não podiam nem comer! O que os impediu de tentar empreender qualquer escalada.
Conhecendo e respeitando os poderes da natureza, mais especificadamente das montanhas andinas, eu e meu grupo, antes de sair de “terra firme”, compramos algumas oferendas – flores, frutas, cachaça e tabaco - ao Cotopaxi e à Pachamama, para que nos protegesse e nos permitisse chegar aos mais elevados estados possíveis. O ritual de oferenda foi banhado por um pôr-do-sol espetacular, no qual as nuvens se foram abaixo de nós e cujas lentes de qualquer câmera fotográfica são incapazes de descrever.
Depois de jantar-mos, fomos dormir, às 7 da noite, já que deveríamos despertar às 00:00 horas do dia 19, para começar-mos a subia à 01:00 da madrugada deste mesmo dia. Passamos boa parte dessa uma hora pondo-nos roupas e equipamentos: duas meias, três calças, quatro blusas, duas luvas, toca, cachecol, tênis de escalada (com superfície de plástico para conter a neve), cinturão de segurança (que nos prendia a nosso guia), lanterna frontal e protetor solar (que, na verdade, nos protegia do violento vento que existe naquelas altitudes).
Começamos, então, nossa jornada “hacia el topar del topo”. A excitação das primeiras horas enche o corpo de energia e adrenalina – é um mundo desconhecido e com um picante sabor de aventura. Apesar da emoção, é justamente nas primeiras horas que se passa pelos momentos mais decisivos – o barulho seco dos grampos entrando na neve começa a ressoar mais forte que qualquer palavra que tenta entrar nos pensamentos; o ritmo pulsativo da aventura diminui com cada tentativa frustrada de uma respiração profunda e satisfatória; a sensação de cada passo naquele terreno íngreme interminável é a percepção de que tudo tende a piorar. A noite na montanha é uma caixinha de surpresas: hora são ventos que rebatem contra peito, hora contra as costas, vêem de todos os lados; hora são nuvens que entorpecem os olhos, chuvas que congelam a alma.
A previsão era chegar ao cume às 7 da manhã, para ver o desde logo tão esperado nascer-do-sol. Só que os minutos são intermináveis. Depois de três horas de caminhada o corpo já não existe, as condições só pioram. Entre chuvas e ventos, se começa a formar uma camada de gelo sobre a roupa. As tentativas de movimentar os dedos dos pés e das mãos se mostram insistentemente inúteis. A água, que havia sido fervida momentos antes de sair, já está tão gelada que nem da vontade de beber – passa a ser um peso que não se pode deixar por sua importância vital em alguma situação inesperada, e vejam que nessas condições qualquer pequeno peso se torna tão grande que te faz pensar mil vezes se é realmente necessário. A partir destas três horas, a vida começa a passar sob os olhos, a percepção do tempo de desmancha no ar, tudo é um segundo e um segundo é tudo. Sob a escuridão da noite, as intenções de desviar-se aos prazeres dos sentidos para esconder-se das dores que eles mesmos te causam são não somente infrutíferas, mas um desperdício de concentração. Destas três horas em diante, tudo que te faz seguir não tem nada de prazer, senão que é apenas a razão de lograr um objetivo que, no fundo, já não se sabe a razão. Mas decisão tomada, o que segue, e o que te faz seguir, é passo atrás de passo, inspiração atrás de expiração, força seguida de esgotamento seguida de força.
E aí, se começa a compreender o sentido das coisas, já não importa mais nada, já não existe corpo, já não existe mente, tudo o que existe é um silêncio profundo e enamorado por cada batida que segue do coração, que te dá o sinal de que ainda existe vida, de que ainda existe força para continuar. A essa altura, quando já não se pode voltar atrás, e se sabe disso, a diferença entre dor e prazer passa a não existir, a solução passa a ser esperar, num silêncio tranqüilo e harmonioso, a chegada à luz, ou melhor, a chegada da luz, do Sol, Deus de muitos milênios, de muitos povos, de muitas vidas, de muitas alegrias. Ahn... e que delícia é quando chega o sol, quando por alguns segundos se alcança ver 360 graus de horizonte, quando se vê claramente a diferença entre o que é céu e o que é terra, entre o que é dia e o que é noite. E depois de tudo isso, o dia começa com uma sensação suave de descida, com paisagens que te permitem ver glaciais, ver o branco opaco das nuvens desde cima contrastado com o branco brilhante da neve que percorre todo o caminho até em baixo. O corpo, apesar de cansado, caminhou leve e contente, derramando lágrimas de emoção e de esgotamento todas as quatros horas que compreendeu o final de nossa aventura.
Chegamos ao refúgio aproximadamente às 11 da manhã. Tinha sono, mas tinha algo que no podia dormir. Tinha fome, e algo que não queria comer. Tudo que fiz foi tomar um incomparável chá quente e preparar-me para voltar ao “mundo real”. Ao final, toda a aventura não foi aventura, foi mais um caminho à aprendizagem e ao conhecimento do espírito. Foi como estar vivo, e não pensar mais em mim, ou como estar morto, para assim poder pensar em tudo, que é pensar em nada, e já que se é nada, tudo que se pode é agradecer, é poder amar.