quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010
TOPANDO AO TODO DO COTOPAXI
Começo por um parênteses – um parênteses que é o mesmo que o lapso entre um pensamento e outro. Giramos em círculos como gira o mundo, e por hora não quero girar neste mesmo mundo que girei até agora. Por isso o lapso de tempo que deixei de escrever nesse blog. Por alguns momentos temos que deixar de pensar que estamos girando, e assim giramos sem tontearmos.
Aqui vai um simples relato de uma não tão mera experiência.
Como toda experiência que vivemos, tenho que começar de algum lugar: assim, o relato da escalada de minha primeira montanha (em sentido literal, e não metafórico) começa contando um pouco do que é o Cotopaxi. Na verdade, Cotopaxi não é simplesmente uma montanha, senão que um dos vulcões ativos mais altos do mundo e o segundo vulcão mais alto do Equador, com uma elevação de 5.897 metros de altura. Deixando visível o poder deste vulcão, Padre Velasco, em sua “Historia del Reino de Quito”, descreve os efeitos devastadores de sua atividader: sobre a erupção de 1698, diz: «Quiso entonces darse a conocer mucho más famoso y terrible que los Etnas, y los Vesubios. Dio principio con espantosos y continuos bramidos y con arrrojar pirámides de humo, costumbre con que quedó hasta estos últimos tiempos. Las prolongadas lenguas de fuego, peñazcos encendidos, en todas las erupciones ha echado agua, solo comparables con la inmensidad del mar». Sobre a erupção de 6 de junho de 1742, diz: «No hizo daño particular con terremotos, pero si con la venida de aguas, que robaron muchas haciendas, ganados, molinos y algunas casas del Barrio caliente del asiento de Latacunga. Las cenizas, arena y menuda piedra, ocuparon muchos centenares de Leguas, en circunferencia, circunstancia que se observa en todas sus erupciones». Registrando também a erupção ocorrida em 1743: «Fue precedida no solamente de bramidos e incendios por la boca, sino del fenómeno más raro que se observo en todo el monte. Déjose ver todo interior encendido, no de otra suerte que de un farol, transpirando por millares de grietas y aberturas, el océano de sus interiores llamas. Tampoco hizo daño con terremotos y la grande erupción hizo de solas aguas, causó menores daños por estar ya robados los ganados y los haciendas de sus anchurosos cauces». Sobre a de 1744: «La portentosa e increíble inundación de agua, que arrojó constantemente toda la noche, creyeron a los principios que era toda la nieve del deshecha, con haberse caldeado el monte; porque se dejó ver al otro día todo limpio de ella… Cuando sobreviniendo las aguas, se lavó el monte de la ceniza y la arena que lo cubría y descubrió toda su nieve empedernida, a excepción de la gran calle que abrió desde la boca hasta su pie. Este cauce era profundo y de más de una legua de ancho, el cual no se vistió de nieve por algunos años… Bajando de aquel cauce, formó al pie un mar Mediterráneo de muchas leguas, profundísiomo, entre montañas y cordilleras, con estrechos desahogos. Desde aquí se dividió rompiendo en nuevos desagües… La parte del Sur no fue la mayor de las tres y ocupo no obstante más de una legua de anchura, en terreno quebrado y profundo. Subió su innundación hasta la plaza mayor de Latacunga y tuvo rodeados a los cuarteles de las casas , entrándose en ellas por puertas dejando en las calles pedrones de hielo arrancados al bajar del monte». O século XVIII foi marcado por nada menos que 50 erupções! Sua última atividade, até agora, foi em 1942 e de menores proporções. Em sua etimologia, a palavra “cotopaxi” significa, em línguas caribes: Rei da morte; em Cayapa: Pescoço ardente; em Quechua: Massa de fogo.
Chegamos de carro até pé do vulcão, aos 4.500 metros de altitude, na metade do dia 18 de janeiro de 2010. O período da tarde compreendeu em caminhar até os 4.800 metros, onde se encontra um refúgio, carregando todos os equipamentos, roupas e comidas. O primeiro desafio é o processo de adaptação à altitude, coisa que para mim foi relativamente fácil, já que havia sofrido fortemente seus efeitos quando estive na Bolívia – muitas das pessoas no refúgio não podiam nem comer! O que os impediu de tentar empreender qualquer escalada.
Conhecendo e respeitando os poderes da natureza, mais especificadamente das montanhas andinas, eu e meu grupo, antes de sair de “terra firme”, compramos algumas oferendas – flores, frutas, cachaça e tabaco - ao Cotopaxi e à Pachamama, para que nos protegesse e nos permitisse chegar aos mais elevados estados possíveis. O ritual de oferenda foi banhado por um pôr-do-sol espetacular, no qual as nuvens se foram abaixo de nós e cujas lentes de qualquer câmera fotográfica são incapazes de descrever.
Depois de jantar-mos, fomos dormir, às 7 da noite, já que deveríamos despertar às 00:00 horas do dia 19, para começar-mos a subia à 01:00 da madrugada deste mesmo dia. Passamos boa parte dessa uma hora pondo-nos roupas e equipamentos: duas meias, três calças, quatro blusas, duas luvas, toca, cachecol, tênis de escalada (com superfície de plástico para conter a neve), cinturão de segurança (que nos prendia a nosso guia), lanterna frontal e protetor solar (que, na verdade, nos protegia do violento vento que existe naquelas altitudes).
Começamos, então, nossa jornada “hacia el topar del topo”. A excitação das primeiras horas enche o corpo de energia e adrenalina – é um mundo desconhecido e com um picante sabor de aventura. Apesar da emoção, é justamente nas primeiras horas que se passa pelos momentos mais decisivos – o barulho seco dos grampos entrando na neve começa a ressoar mais forte que qualquer palavra que tenta entrar nos pensamentos; o ritmo pulsativo da aventura diminui com cada tentativa frustrada de uma respiração profunda e satisfatória; a sensação de cada passo naquele terreno íngreme interminável é a percepção de que tudo tende a piorar. A noite na montanha é uma caixinha de surpresas: hora são ventos que rebatem contra peito, hora contra as costas, vêem de todos os lados; hora são nuvens que entorpecem os olhos, chuvas que congelam a alma.
A previsão era chegar ao cume às 7 da manhã, para ver o desde logo tão esperado nascer-do-sol. Só que os minutos são intermináveis. Depois de três horas de caminhada o corpo já não existe, as condições só pioram. Entre chuvas e ventos, se começa a formar uma camada de gelo sobre a roupa. As tentativas de movimentar os dedos dos pés e das mãos se mostram insistentemente inúteis. A água, que havia sido fervida momentos antes de sair, já está tão gelada que nem da vontade de beber – passa a ser um peso que não se pode deixar por sua importância vital em alguma situação inesperada, e vejam que nessas condições qualquer pequeno peso se torna tão grande que te faz pensar mil vezes se é realmente necessário. A partir destas três horas, a vida começa a passar sob os olhos, a percepção do tempo de desmancha no ar, tudo é um segundo e um segundo é tudo. Sob a escuridão da noite, as intenções de desviar-se aos prazeres dos sentidos para esconder-se das dores que eles mesmos te causam são não somente infrutíferas, mas um desperdício de concentração. Destas três horas em diante, tudo que te faz seguir não tem nada de prazer, senão que é apenas a razão de lograr um objetivo que, no fundo, já não se sabe a razão. Mas decisão tomada, o que segue, e o que te faz seguir, é passo atrás de passo, inspiração atrás de expiração, força seguida de esgotamento seguida de força.
E aí, se começa a compreender o sentido das coisas, já não importa mais nada, já não existe corpo, já não existe mente, tudo o que existe é um silêncio profundo e enamorado por cada batida que segue do coração, que te dá o sinal de que ainda existe vida, de que ainda existe força para continuar. A essa altura, quando já não se pode voltar atrás, e se sabe disso, a diferença entre dor e prazer passa a não existir, a solução passa a ser esperar, num silêncio tranqüilo e harmonioso, a chegada à luz, ou melhor, a chegada da luz, do Sol, Deus de muitos milênios, de muitos povos, de muitas vidas, de muitas alegrias. Ahn... e que delícia é quando chega o sol, quando por alguns segundos se alcança ver 360 graus de horizonte, quando se vê claramente a diferença entre o que é céu e o que é terra, entre o que é dia e o que é noite. E depois de tudo isso, o dia começa com uma sensação suave de descida, com paisagens que te permitem ver glaciais, ver o branco opaco das nuvens desde cima contrastado com o branco brilhante da neve que percorre todo o caminho até em baixo. O corpo, apesar de cansado, caminhou leve e contente, derramando lágrimas de emoção e de esgotamento todas as quatros horas que compreendeu o final de nossa aventura.
Chegamos ao refúgio aproximadamente às 11 da manhã. Tinha sono, mas tinha algo que no podia dormir. Tinha fome, e algo que não queria comer. Tudo que fiz foi tomar um incomparável chá quente e preparar-me para voltar ao “mundo real”. Ao final, toda a aventura não foi aventura, foi mais um caminho à aprendizagem e ao conhecimento do espírito. Foi como estar vivo, e não pensar mais em mim, ou como estar morto, para assim poder pensar em tudo, que é pensar em nada, e já que se é nada, tudo que se pode é agradecer, é poder amar.
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