Era uma vez um samba. Um samba de Chico Buarque de Holanda. Diz ele que foi à Lapa para fazer uma homenagem, um samba àquela malandragem, mas chocou-se, pois as pessoas que formavam sua engrenagem já não existiam mais. Agora têm que trabalhar, na lógica de sujeitar sua força e sua potência às leis do capitalizar. E então o malandro mudou de classe e mudou de nome. Agora sob uma nova face, a face do Bem, das leis e do trabalho, esse malandro esbanja poder, dinheiro e paga salários – salários de fome, fazendo daquilo que era um homem seu cachorro domesticado. Assim se deu a morte do malandro da Lapa, assim morreu sua criatividade, assim domou-se sua vadiagem.
Mas em Santa Cruz - Bolivia a coisa é diferente. Por enquanto não vejo grandes coorporações, não vejo grandes redes de lojas ou supermercados, não vejo McDonalds. Mas vejo pícaros e maleantes, com criatividade e agilidade de espantar, de surpreender turistas, que vêm aqui aproveitar todo o dinheiro que, na Europa e nos Estados Unidos, ou até mesmo no Brasil, está a sobrar. E assim se tranfere um pouco de tecnologia aos países pobres. São câmeras fotograficas de última geração, são celurares, notebooks e até a documentação. Mas, infelizmente, a incorporação desta tecnologia só vem por essa via, ou pela via do consumo dos que aqui andam com super caminhonetes ou limosines, dos que pagam suas compras em dólares, nas lojas que só cotam seus preços assim.
Mas aqui também tem gente honesta. Gente que não se dá ao luxo à televisão, gente que enche as praças às noites, aos domingos, aos feriados. Gente que senta à beira da rua, gente que mira e da valor a sua cultura. Gente à assistir concertos musicais públicos, gente que os assiste sem precisar de cerveja, gente num caminho lúdico-simples. E as manifestações aqui ocorrem todos os dias, sejam políticas, culturais ou meramente pessoais, pois é na rua que as pessoas estão e é dela que retiram com o que viverão. Mas há aqueles que reclamam: “Os bolivianos são preguiçosos, não querem trabalhar. Deviamos trabalhar pelo menos 12 horas por dia, só assim é possível o progresso, só assim é possível capitalizar”.
Santa Cruz é o departamento mais rico da Bolivia, aqui se produz a maior parte dos produtos agricolas e industriais, aqui está a maior parte da produção de petróleo e gás natural da Bolivia dos dias atuais. Aqui está a maior parte dos brancos e mestiços, ou os sem nenhuma autoindentificação sengundo o senso do povo originário ou indígena da Bolivia, no qual constam os Quechuas, os Aymaras, os Guaranís, os Chiquetanos, os Mojeños e outros nativos, com forte maioria dos dois primeiros na totalidade da população boliviana. Aqui percebi também posições contrárias e favoráveis à Evo Morales e suas políticas. Os de raíz indigena costumam ser favoráveis à Evo e à exaltar sua vida pessoal. Muitos brancos e mestiços de maior poder aquisitivo, que ficam em cafés discutindo os processos políticos atuais, enquanto os com algum sangue indigena trabalham, costumam defender as posições anti-Morales e liberais. Há também os que simplesmente se calam. Tudo isso segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas da Bolivia, minhas próprias percepções em minhas experiências e conversas pessoais com ricos e pobres, numa quantidade não tão extensa como numa pesquisa científica “legítima”.
No momento ainda me pergunto: O que é a Bolivia, sua história, seu povo, sua cultura? Para onde está indo com o governo de Morales, com sua nova constituição e a nova consciência política de seus povos? Quais são as forças políticas que realmente a determina hoje? Quem produz o que a Bolivia produz como isso é distribuído?
Os que reclamam não sabem ainda o trauma de apenas ser mais um a se explorar, de dedicar sua energia a coisas que não voltam às mãos, numa lógica de consumo, de destruição, da atenção, do tempo e da emoção, mas também de toda construção, selando a morte da criatividade e da tradição, que sempre cai em descontrução para dar lugar a algo mais “moderno”, que vai ter mais valor e mais vapor, mais poder centralizado. Dizem estes: “Vou para os Estados Unidos buscar minha liberdade”. Respondo eu: “Vai com Deus irmão, mas talvez veja o significado da escravidão”.